Em ritmos diferentes, várias cidades do Brasil começam a reabrir o comércio e retomar atividades pausadas pela pandemia. A maioria, ao menos no início, vai ter que adaptar a experiência do consumidor para conciliar dois pontos fundamentais: economia e saúde pública.
Mas, depois de meses de distanciamento social e adaptação à rotina da quarenta, como o consumidor vai se comportar? Quais mudanças forçadas ou impulsionadas pela pandemia vão perdurar e quais serão abandonadas?
Num cenário cheio de incertezas, executivos precisarão estar mais do que nunca atentos ao zeitgeist, ou melhor, ao “espírito do momento”. E a melhor forma de fazê-lo é ouvindo o consumidor. E não basta perguntar. É preciso explorar, se conectar à diferentes realidades e antecipar necessidades.
Com todos esses desafios pela frente, a Featured Story deste mês traz Kika Brandão, líder do Estúdio Eixo, consultoria que mapeia as transformações comportamentais que estão impactando marcas e negócios, entregando insights valiosos que orientam estratégia, para um papo sobre o futuro do consumo e as maneiras de mapear o que ela chama de “inteligência social”.
P: Kika, a gente tá vivendo um momento particularmente rico no que tange o consumo, ou as mudanças de comportamento social são tão constantes que tornam a pandemia em apenas mais um capítulo na história toda?
R: Eu diria que estamos vivendo um momento extremamente rico e desafiador, e isso pode e deve ser visto por diversas lentes, mas todas elas convergem para a nossa necessidade de compreender as pessoas. É um ciclo ativo de ruptura e transformação de formatos. A gente nunca mudou tanto e em tão pouco tempo!
Passamos os últimos 10 anos apaixonados pela inteligência de dados, achando que ela seria a salvação, que traria todas as respostas pros nossos negócios. Com isso nos desconectamos das pessoas e começamos a generalizar o nosso entendimento do mundo e das nossas audiências.
Sobre a pandemia, eu acredito que ela seja um marco emblemático da mudança comportamental. As últimas três gerações (millenials, genz z e gen x) chegaram até 2020 sem grandes acontecimentos com impacto mundial. A gente navegava quase sempre replicando o status quo, aí veio um vírus e mudou a lógica da sociedade, colocando em xeque todos os aspectos da nossa vida: trabalho, relações, consumo, futuro, bem-estar.
P: O que é inteligência social e como podemos observá-la?
R: Sendo bem simplista, o conceito de inteligência social fala sobre a nossa habilidade de nos conectarmos com o outro de maneira positiva. Isso passa, obrigatoriamente, pelo exercício da empatia e pelo nosso poder de influência.
Quando a gente olha pro mundo sem juízo de valor, tentando compreender o diferente, e a partir disso construímos relações positivas, estamos usando puramente a nossa inteligência social. Parece impossível, eu sei. Nossa mente está programada para julgar a partir da nossa visão de mundo, da nossa bagagem adquirida.
Fazendo uma costura com o momento atual, a gente vive em constante ruptura e o clima de polarização é intenso. Algumas práticas e modelos se tornaram insustentáveis e outras estão emergindo, mas existe essa tensão entre o velho e o novo, a tensão da transição.
Todos nós vivemos, diariamente, situações que pedem o uso da inteligência social. É aquele exemplo clássico de marcas que se veem pressionadas à mudança, que entenderam que é inegociável pro consumidor a transparência, posicionamento autêntico e consistente. Elas precisam mudar, mas muitas vezes quem está na liderança não internaliza isso. Como o movimento não é verdadeiro, as barreiras vão surgindo e é nesse momento que a inteligência social entra, conectando as pessoas, construindo um terreno de entendimento, separando o que seria apenas uma entrega de job de um movimento genuíno de transformação.
Fazendo uma analogia à lógica Uber, a inteligência social tem o poder de conectar as marcas que precisam encabeçar mudanças de cultura, por exemplo, com as pessoas que lideram esses processos.
P: Quais são os pontos mais importantes que executivos e empreendedores precisam observar neste momento e o que fazer pra não se tornar obsoleto?
R: Vixi, acho que isso é uma lista grande e variável, de acordo com os desafios de cada negócio. Pensando naqueles que estão mais pulsantes na Eixo, e que vejo ressoando no mercado, separei meu top 3:
1. Unir visão de negócio com gestão de gente
No geral, as empresas enxergam pessoas como linha de custo, daí vira aquele trabalho de cumprir tarefa e não de usar a massa crítica e a inteligência do time para resolver problema de forma inovadora. É hierárquico, burocrático e chato. Meus últimos trabalhos foram em estruturas mais horizontais, onde as pessoas assumiam posturas empreendedoras nas suas áreas. O clima, conexão, entrega e eficiência escalam para outro nível. A Eixo já nasceu operando assim e eu enxergo que é um desperdício fazer do modo antigo. Nós líderes precisamos criar espaços para que as pessoas brilhem a sua máxima potência, e esse momento onde o home office se apresenta como uma realidade
2. Cultura maker
Acho fundamental sair das narrativas conceituais e ir pra ação, botar a mão da massa para construir o que a gente quer, seja uma campanha, a cultura de uma empresa, um serviço novo de uma empresa.
Tem muita ideia boa que não para em pé, e a gente só descobre quando testa. A cultura maker é sobre fazer, errar, fazer de novo, viver no modo beta de aperfeiçoamento. Eu sei que isso agora tá na moda, mas sinto que ainda é muito texto e pouca prática. Ser maker é conviver com o erro e a gente não aprendeu que errar é permitido, principalmente nos espaços de trabalho.
Eu não sou nativa da publicidade. Comecei minha carreira em comunicação com 19 anos, na Editora Globo, depois trabalhei por 8 anos na Editora Abril, onde entrei como repórter, virei editora e encerrei a jornada no Estúdio ABC, núcleo que branded contente.
Eu sempre digo que gostaria que as pessoas das marcas e das agências tivessem a oportunidade de viver uma experiência numa redação. É o maior pensamento maker da comunicação: você pensa na pauta, tem um tempo curto para preparar a entrevista, produzir a foto, fechar texto e mandar pra gráfica. O que fica ruim refaz, se não tiver verba tenta resolver no layout, mas no final a revista tá impressa na gráfica e o processo gera muitos aprendizados para o próximo mês.
3. Impacto
Esse eu acho o mais desafiador, pois é uma mudança de cultura que esbarra no nosso sistema econômico! A gente chegou até aqui acreditando que toda a matéria é infinita, que a gente pode consumir e produzir sem responsabilidade. Vai dar muito ruim, mais do que já deu.
Eu trabalhei 3 anos perto da indústria de alimentos e bebidas, e por isso tive a oportunidade de ir ao Fru.to, um projeto do Alex Atala com o Felipe Ribenboim. Durante alguns anos eles reuniram lideranças de diversos países e especialistas de muitas áreas, lá no Unibes Cultural, para discutir impactos no planeta e mostrar para onde estamos caminhando, com uma lente voltada para alimentação.
O projeto é incrível, mas foi desesperador ter conhecimento de tanto dado técnico sobre o nível de destruição em que chegamos, e que só existe por conta da nossa irresponsabilidade sobre o consumo. Alias, as edições estão disponíveis no Youtube e aconselho demais!
A gente precisa entender que é responsabilidade da empresa que fabrica eletrodoméstico oferecer uma solução de descarte sustentável, assim como a indústria de A&B precisa pensar em embalagem. A Natura tá nos mostrando que é possível aliar crescimento com impacto, a Movida entrou para o sistema B e hoje cuida da neutralização da emissão de carbono que os carros produzem.
P: O Estúdio Eixo fala em “investigar o que o algoritmo não enxerga”, mas, somos tão conectados e dependentes das tecnologias digitais… Existe algo que o algoritmo não enxerga?
R: Olha, essa pergunta vai me deixar em uma situação delicada com a turma dos dados… Brincadeiras à parte, eles são grandes aliados da Eixo. Não existe entender o mundo sem a lente dos dados, e por isso os nossos mapeamentos comportamentais começam sempre a partir do digital journey, nossa metodologia que combina netnografia, social listening e leitura de múltiplas plataformas, justamente para entender como as pessoas se comportam nas redes.
Os dados são vitais porque nos ajudam a entender, com escala e rapidez, o que é relevante para certo público e onde acontece, mas eles não dizem o porquê e o como que levam a tal comportamento. Isso depende do entendimento humano sobre as pessoas, e é pra isso que a gente precisa olhar com maior profundidade, mais do que nunca. Essa combinação potente entre dados e olhar humano!
É muito comum ir à campo cheio de certezas a partir dos achados do campo digital, e descobrir coisas incríveis sobre as pessoas, que acabam mudando o rumo do projeto e endereçando decisões importantes para os nossos clientes, e que não foram entregues pelo algoritmo.
Outra questão é que o Brasil é enorme e as marcas pautam suas estratégias, majoritariamente, para o público18-34 do Sudeste. A gente tem um país culturalmente diverso e complexo, onde a regionalização é importantíssima para uma comunicação consistente. Por isso a importância da gente, a partir dos achados do algoritmo, aprofundar e conhecer, ver de perto. Cultura se absorve com observação e proximidade, e hoje é um mix de códigos digitais e não digitais.
R: Vocês trabalham com uma série de metodologias e técnicas diferentes pra gerar insights que orientem marcas e negócios. É necessário seguir desenvolvendo novas metodologias? Se sim, como fazer isso?
R: A Eixo entende a mudança do mundo pelo olhar das pessoas que estão no centro das transformações. Ou seja, a gente tá sempre de olho nos movimentos culturais, na rua, no presente e no que está nascendo. Decodificamos os códigos e assuntos que estão reverberando nas pessoas, o que está emergindo nos comportamentos. Tudo isso exige um radar ligado o tempo todo.
Eu reforço todos os dias os aprendizados que tive quando trabalhei em redações de revista, e que ouvi muito da minha amiga e mentora Lulie Macedo – a gente precisa ter um faro apurado e muita curiosidade, conhecer boas fontes e saber fazer as perguntas corretas. Adiciono que, para dar conta do excesso de informação e velocidade das coisas, é preciso uma busca constante de novas ferramentas de trabalho e metodologias, pois nos ajudam a ganhar agilidade, testar e ajustar a rota. O processo é orgânico e estamos em um momento de co-criar metodologias com agências parceiras.
P: Você conseguiu tirar aprendizados deste período de pandemia? Se sim, quais?
Sigo aprendendo todos os dias. Resiliência, acolhimento e paciência viraram meus mantras, e sou uma pessoa bem agitada e ansiosa. Agora já entro nas reuniões pensando que tá todo mundo exausto e vivendo um momento desafiador, e por isso preciso praticar a empatia e escuta mais do que nunca. Eu sinto que estamos nos conectando pelas dificuldades, sem conseguir esconder a vulnerabilidade.
Não tem como esconder, tá todo mundo perdido, em maior ou menor grau. E vendo pela ótica do copo meio cheio, essa ausência de perspectiva vai virar terreno pra gente colocar a mão na massa e começar a desenhar a realidade que a gente quer.