Racismo no mercado de comunicação

A convite da BPool, Ian Black, fundador da agência New Vegas, escreveu sua perspectiva sobre o tema que voltou a ganhar destaque nos últimos dias: racismo. Entendemos também que só falar não é o suficiente, mas abrir espaço pra quem tem propriedade e voz ativa neste campo é a nossa obrigação. Confira abaixo:

POST E TEXTÃO NO INSTAGRAM NÃO RESOLVEM A DESIGUALDADE, MAS ESCANCARAM A SUA RESPONSABILIDADE DE FORMA IRREVERSÍVEL

“Enquanto a gente não dividir a grana, não vai funcionar. O fato de você colocar a Karol Conka em um palco de um evento ou campanha não vai fazer com que amanhã tenha mais pretos na empresa”  

O trecho acima é de uma matéria que foi capa no Meio & Mensagem em Agosto de 2017. Três anos atrás, na CAPA do Meio & Mensagem. Não tem como falar que não leu.

O racismo não é sobre as violências físicas e subjetivas contra as pessoas negras (e outros grupos racializados ), mas sobre a um sistema político, econômico, educacional, cultural e social no qual as pessoas brancas controlam predominantemente o poder e os recursos materiais; as ideias conscientes e inconscientes de superioridade e direitos dos brancos são generalizadas, e a relações de domínio branco e subordinação não-branca são reencenadas diariamente em uma ampla gama de instituições e contextos sociais. 

Difícil dizer que você não faz parte disso. Basta olhar as turmas das escolas pelas quais você passou, as empresas onde você trabalhou, os restaurantes que você frequentou, as pessoas com quem você namorou ou casou, as suas redes de amigos e parceiros comerciais. No dia em que saiu a matéria de capa do meio e mensagem, há três anos, fui almoçar com uma amiga rica, branca e loira num restaurante em Pinheiros. Quando mencionei se ela nunca tinha reparado que normalmente em restaurantes daquela e de outras regiões,  onde a conta dá no mínimo 40 reais por pessoa, é quase impossível encontrar uma pessoa negra.

 O racismo existe e é mantido como uma estrutura sólida, celebrada e inabalável para que você continue ganhando bastante dinheiro enquanto a imensa maioria das pessoas não ganha nada. Para ser mais exato: se você ganha mais de R$ 15.000,00 por mês, você está no seleto clube de 2 milhões de pessoas, ou seja, 1% da população brasileira, enquanto 218 milhões ganham menos do que isso. Se você ganha R$ 5.000,00 mensais em São Paulo você é mais rico que 95% da população Brasileira. Em São Paulo, a média de salário mensal é de R$ 3.000,00, enquanto no Maranhão é R$ 1.000,00 (menos da metade do que você provavelmente gasta em restaurantes).

Para referência, um professor ganha em média R$ 2.500,00, um policial militar ganha R$ 2.800,00, um médico iniciante ganha R$ 8.600,00, um juiz R$ 28.000,00, um deputado federal ganha R$ 33.000,00. E se você trabalha numa grande empresa  ou numa grande agência brasileira você sabe que você está mais próximo dos 1% e conhece gente que ganha ainda mais. 

Ou seja, “abrir mão dos privilégios”, “ser anti-racista”, “fazer a sua parte”, “ajudar de alguma forma”, etc passa inevitavelmente por decisões caras como não criar disparidades salariais, promover um ambiente nos quais pessoas de todas as classes se beneficiem, não explorar fornecedores e não apoiar políticas públicas que precarizem as relações trabalhistas.

Eu duvido que você esteja disposto a isso, mesmo que isso signifique uma sociedade mais justa, onde todos podem sonhar de prosperar de forma apropriada e segura, para que todos possam ser felizes, possam estar em paz e possam ser livres, inclusive você. 

Por isso, tenho péssimas notícias: Se a diferença entre o maior e o menor salário na tua empresa supera um múltiplo de 8 (ou seja, se tem gente ganhando R$ 3.000,00 e outras ganhando R$ 24.000,00), se você faz malabarismos fiscais para sonegar impostos e apoia de forma irrestrita políticas liberais que beneficiam descaradamente apenas empresários e industriais e menos a população geral e micro e pequenos empresários e produtores, você não só é racista como é um dos mais fiéis guardiões da integridade da estrutura racista no país mais racista do mundo.

E nenhum post de instagram vai te salvar. 

E  eu nem falei da nossa responsabilidade como  profissionais da comunicação. Esse mercado   no qual se insiste que diversidade se resolve com cotas mínimas de coadjuvantes reproduzindo os preconceitos dos diretores de criação, que na sua maioria são homens brancos e héteros, ou tokens que servem mais para serem exibidos em matérias de diversidade no Meio & Mensagem mas nunca em destaque na coluna Gente da mesma revista.

 É o que observa a filósofa e ativista norte-americana Syl Ko:

A ‘diversidade’ que é tão alardeada pelas agências e publicidade e seus anunciantes vem da ideia / objetivo de que pessoas pretas e de outros grupos minorizados deveriam funcionar como casulos para as perspectivas e teorias brancas em oposição às suas reais contribuições com seus próprios pontos de vistas. Então, o que coloca aqui é que as considerações sobre pessoas pretas são inferiores, inválidas ou negligenciáveis, assim, o único valor nas pessoas pretas nesses espaços são a respeito de suas capacidades de se adaptarem e reproduzirem branquitude. Num resumo, “diversidade” é a presença de corpos negros em oposição à presença de ideias negras nascidas de perspectivas negras, em espaços predominantemente brancos.

Eu entendo que não faltam propagandas para pessoas pretas.

Embora  pesquisas como a da empresa Locomotiva, do Renato Meirelles,  apontem uma vontade dos consumidores pretos e pretas de se verem mais nas propagandas, esse apontamento orienta mais sobre como as agências podem capitalizar em cima de pessoas pretas com produtos e serviços de grandes empresas controladas por pessoas brancas  e menos sobre qualquer tipo de construção que signifique um empoderamento financeiro da população negra. Ou seja, perpetuação das desigualdades.

Sabemos que a publicidade tem um naco generoso de responsabilidade na construção do ideal racista na TV e na propagação de toda violência física e subjetiva vinda disso, mas ir no caminho inverso e só agora  colocar mais pessoas pretas não resolve essa questão (a não ser que tenha saído algum estudo e eu tenha perdido).

O que constrói auto-estima é acesso a dinheiro e poder, e não apenas gastar dinheiro com os produtos vendidos em propagandas na TV. A presença de pessoas pretas em comerciais de TV para redes de fast food contribuem mais para a construção da auto-estima desse grupo ou no incentivo para uma oi consumo de uma população que come cada vez pior por ter pouca grana e pouca informação ?

Apesar de todos os discursos e promessas vazias, a publicidade e todo o mercado de comunicação continuam contribuindo para as desigualdades no Brasil, mantendo uma narrativa unicamente branca e ignorando que a luta anti-racista não é opcional. Em tempos de quarentena, tenho notado os relatórios de tendências constrangedores sobre a pandemia e o novo normal, que apresentam dados de consumo e previsões  econômicas, mas quase sempre ignoram o principal: AS PESSOAS. 

Em tempo, já passou das hora de agências, anunciantes e imprensa especializada não criem mais barreiras para que pessoas pretas protagonizem na propaganda para além da raça. Podemos e queremos falar de conteúdo, gestão, pessoas, planejamento, negócios, gastronomia, política, criatividade, cinema, videogame, alimentação, veganismo, literatura, música, cultura popular, artes, filosofia igual ou melhor que muita gente branca, ainda mais na propaganda, mas sempre sou / somos lembrados para falar de raça, sempre, mostrando que a supremacia branca se estabelece como local de enunciação universal, que pode falar sobre qualquer coisa, ao passo que restringe assuntos que podemos e devemos falar ao campo da questão racial. 

 Localizando a fala de Syl Ko, reforço a contradição da intenção de diversidade:

O problema é que vivemos num país que apaga, rejeita e diminui o valor das contribuições oferecidas por pessoas negras; que implica no apagamento, rejeição e inferiorização dos valores familiares, comunitários e históricos representados e tratados em muitas dessas contribuições. Em outras palavras, nós vivemos numa sociedade que culturalmente ou simbolicamente elimina VIDAS negras. Nós podemos até chamar isso de uma tradição brasileira: VIDAS NEGRAS NÃO IMPORTAM. Se importassem, nós não estaríamos ainda nos afogando em branquitude e eurocentricidade e colonialismo e DESIGUALDADE até hoje.

Você pode até dizer que não é culpada pela escravidão ou pelo surgimento da estrutura racista, mas a partir do momento em que você sabe que sempre se beneficiou política, econômica, social, educacional e profissionalmente dele em detrimento da grande maioria da população e mantém esse sistema intacto, sem questionamentos e, principalmente, sem ações concretas, você é, sim, muito responsável.

Você só pode ostentar seus valores quando abre mão de privilégios em nome deles.

E a história vai cobrar o seu preço.

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