Sócio e fundador da OutField, consultoria de sports business, Pedro Oliveira compartilhou com a BPool um pouco do que tem visto de estratégia de rentabilização de conteúdo na indústria gamer. Confira abaixo!
Mundos diametralmente opostos, o universo gamer e o futebol brasileiro discutiram o mesmo tema ao longo das últimas semanas: direitos de transmissão e estratégias de rentabilização de conteúdo. Ao passo que em junho o presidente promulgou a Medida Provisória 984, a partir da qual os clubes recobram a prerrogativa de negociação dos direitos de transmissão de partidas nas quais sejam mandantes, no dia 22 do mesmo mês, a Mixer, plataforma de streaming gamer da Microsoft, anunciou que está fechando as portas, mostrando que mesmo em meio à pandemia não houve audiência suficiente na plataforma que compete com o gigante Twitch, adquirido pela Amazon em 2014.
Afinal, por que mesmo contando com um pai rico e diversos influenciadores de alto gabarito, a Mixer nunca decolou? Para responder essa pergunta, voltemos quase 12 meses no tempo. Em agosto do ano passado, a empresa anunciou a contratação de Ninja, maior personalidade global do mundo gamer, acertando com ele um belo contrato estimado em USD50M por dois anos. Notem: 50% a mais do que alguns dos mais importantes clubes de futebol recebem hoje no Brasil por seus direitos exclusivos de transmissão. Ou seja, quando jogasse em casa, no caso, no seu próprio canal, Ninja só poderia fazê-lo através da Mixer. Porém, o efeito manada não ocorreu como a Microsoft esperava e até a data do fechamento da plataforma, Ninja tinha atraído 3 milhões de seguidores para seu canal na Mixer, apenas 20% dos seus seguidores no Twitch (nesta semana Ninja já começou suas transmissões no concorrente YouTube Gaming). Shroud, outra celebridade do mundo gamer também foi atraída pelos milhões da Mixer pouco depois, estima-se um contrato de USD25M por 2 anos. Spoiler alert: também não deu certo.
O Twitch continua como plataforma destino da comunidade gamer, batendo recorde atrás de recorde nas quarentenas globais. Enquanto isso, canhões como Ninja e Shroud entregaram à Mixer apenas 3% de market share, contra 65% do monstro inabalável Twitch. Logo, podemos concluir que mesmo em mercados altamente engajados como o dos games é difícil desassociar a qualidade de produção e a experiência melhorada que o usuário possui em determinado ambiente, além da falta de ânimo (e bolso) para acompanhar conteúdos em diversas plataformas. A aposta da Mixer de que o talento poderia arrastar sua audiência com ele não funcionou. Essa é a 1ª lição aqui: exclusividade não é suficiente e a dispersão excessiva é um perigo.
Em termos de modelo de negócios, a Mixer sempre apostou no cross-sell com o XBOX e sua plataforma de assinatura XBOX Game Pass, e na monetização B2C, ou seja, venda de assinaturas para acesso a conteúdos e features exclusivos. No entanto, a verdade é que no maravilhoso mundo de abundância de conteúdo em que vivemos, cortesia de Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, Reed Hastings e agora Tiktok, as pessoas não querem pagar ou pouco pagam por conteúdo. Foi só por isso que a Mixer perdeu? Não. Faltou a visão de pensar em um business voltado à construção de audiência e boa experiência de consumo, atrelado à venda de anúncios e monetização programática, como historicamente fazem Amazon, Facebook e, vejam só, a Rede Globo.
Voltando ao futebol, a realidade que temos no Brasil há pouco mais de uma década é a venda individual de direitos quase que por osmose para a Rede Globo, a única compradora com poder financeiro suficiente para sustentar os mal geridos e em estado falimentar clubes brasileiros. Agora com a MP 984 tem clube falando em transmitir seus próprios jogos e que agora poderão negociar os direitos para o “highest bidder”, como se isso fosse tábua de salvação. Ora, em primeiro plano, o exemplo de Mixer e Twitch demonstra que a fragmentação não é o caminho ideal, pois o consumidor possui recursos finitos e a exclusividade para um player com audiência reduzida e sem trackrecord comprovado pode matar seu conteúdo.
Isso para não tocarmos na raiz do problema: grande parte destes clubes derrapa para manter os salários de seus atletas em dia e para fazer entregas padrão aos seus anunciantes, que dirá desenvolver uma produção “padrão Globo” que é o que todos nós, como consumidores e marcas, estamos habituados a ver. Aqui surge outro ponto fundamental do debate: normalmente as pessoas não levam em consideração custos e capacidade de produção – capacidade leia-se como o valor central do que a transmissora entrega. Ou os clubes pensam que Galvão Bueno se tornou a voz do esporte brasileiro da noite pro dia? Há no que a Globo entrega uma qualidade consistente de produções bem feitas e de experiências únicas que ela trouxe ao mercado consumidor e aos anunciantes. Do Tetra à F1, dos Mundiais de Clubes ao UFC.
Assim retornamos ao exemplo do Twitch, porque lá o que sustenta a plataforma vai muito além das assinaturas pagas pelos usuários ou da grana injetada pelo pai rico. Há ali um modelo de negócios que se utiliza de dados e time-spent para vender anúncios direcionados e converter vendas dentro da Amazon – algo que a Mixer nunca entendeu e tão pouco conseguiu tatear, mesmo contratando com exclusividade dois dos principais influenciadores do mercado. É por isso que o modelo falhou.
Neste sentido, ao invés de comemorar a suposta vitória dos clubes que agora podem negociar direitos por conta própria ou, na minha visão, destruir valor individualmente, temos que entender que enquanto não houver organização estrutural e um modelo de Liga, todo esse papo de rentabilizar melhor direitos de transmissão não vai se materializar, pois não há segurança jurídica e a pobreza de formatos e falta de capacidade de entrega são regra (note-se: nem um décimo dos Clubes brasileiros têm estabilidade financeira e potencial comercial para criar uma transmissão como a que o Flamengo fez na FlaTV há poucas semanas – exceção total à regra). Fragmentação não é o caminho e exclusividade também não: o caminho é o bom e velho modelo de negócios que converse com a demanda existente. Os recentes resultados das transmissões realizadas por Flamengo e Fluminense (ambas as maiores transmissões ao vivo da história do YouTube global) comprovam isso – a demanda está presente, agora como desenvolver uma oferta que converse com ela e entregue valor contínuo?
Para resolver isso não precisamos ir muito longe. NFL e NBA, os dois maiores exemplos de monetização de direitos de transmissão no mundo, funcionam como ligas e a partir de negociações coletivas, criaram slots que são negociados individualmente. Ou seja, não há fragmentação por clube e sim o “fatiamento” dos jogos em horários diversos, mais ou menos nobres, que são adquiridos de acordo com seu retorno de audiência – é assim que a NBC, por exemplo, gere há décadas o Sunday Night Football – de longe, o maior programa da TV americana há anos.
Portanto, torço para que ao invés de mergulhar no nonsense da venda individual no “saldão”, os clubes brasileiros aproveitem o momento de crise e mudanças estruturais para se aproximarem e debaterem um modelo unificado em que estejam juntos também para criar produtos de qualidade. Se daí sair o Twitch do futebol brasileiro, como uma plataforma única em que possamos assistir o Brasileirão conectados a um marketplace com produtos, ingressos e experiências, estaremos no paraíso. Talvez tenha sonhado longe demais, mas pra chegar lá, temos que começar de algum lugar.
Belo texto!